É célebre a frase de KARL MARX segundo a qual “a religião é o ópio do povo.” (1) No Brasil, é mesmo trivial aos filósofos de plantão parafrasear MARX para atribuir efeito hipnótico ao “futebol”, “carnaval” ou “samba”. De fato, aqui, muito se ouve dizer que "futebol é o ópio do povo". Carnaval e samba um pouco menos. Mas não deixam de ser invocados como exemplos de entorpecimento da massa popular.É inviável nos estreitos limites deste artigo qualquer tentativa de delimitação semântica da apontada expressão marxista. Não haveria, aqui, espaço para tal intento. A frase, devido ao seu formato retórico, pode dizer muito ou pouco, a depender de quem a examine. Nela podem ser vislumbradas, no mínimo, duas figuras de linguagem: uma de caráter metonímico (sinédoque) e outra metafórica.
A referência a conteúdos semânticos através de vocábulos que, ordinariamente, designam outras coisas, indica recorrência ao estilo tropológico (ex.: ópio por sentimento, paixão etc.). A substituição do todo pela parte, como o emprego do termo poder por religião(2), induz uma sinédoque. Nesse breve périplo discursivo não se pretende avançar além dessa nuance lingüística. Não mais.
Porém o que, no fundo, importa é lançar uma ligeira reflexão a respeito dessa intrigante máxima brasilíada: "o futebol é o ópio do povo". Acontece que as coisas não parecem ser bem assim. Dizer que futebol, samba ou carnaval entorpecem a massa é simplificar muito a nossa realidade, pois o que de fato encanta, hipnotiza, cega o povo é o poder, do qual a religiosidade, a política, o dinheiro, o conhecimento são parte, meros ícones, expressões não raramente dissimuladas.
O poder, sim, é o autêntico, o original, o determinante ópio do povo. Olhe em torno de si e verás. Que você se cala por temer o poder. Que você silência porque depende, direta ou indiretamente, do poder. Que você reage para defender o seu naco de poder. Que você ataca para também alcançar o poder. Que você tolera, aprova ou consente certas coisas com a esperança de conquistar algum espaço no poder. Há certos indivíduos que imaginam que o poder só é útil quando está sob o seu controle...
A luta pelo poder, quando não pela própria subsistência através dele, torna o debate político irracional. O que importa é estar no poder, com o poder, pelo poder. O poder não é nosso. É meu! Não é instrumento de realização do bem comum. É arma de locupletamento ilícita na mão de salteadores dos cofres públicos. O poder é visto como um fim em si mesmo. O resto são detalhes a serem resolvidos na forma preconizada pelo postulado da conveniência.
Por ser ópio, o poder é mágico, não só do ponto de vista do poviléu, como pensava MARX, mas também dos patrícios (econômica, intelectual, política e religiosamente). Do ápice à base da pirâmide, cada seguimento social com ele se encanta, na proporção de suas experiências emocionais. Algumas pessoas o têm nas mãos e o manipulam ao sabor de suas conveniências. Outras o acham inatingível, e se curvam diante de seus detentores.
Deve-se admitir, no entanto, que a influência do poder é inevitável e se manifesta, principalmente, nas relações intersubjetivas, nas interações sociais. No seu campo de interação o homem sempre estará tentando influenciar os outros no intuito de alcançar os seus objetivos individuais ou coletivos. Cuida-se de um fenômeno social visto com naturalidade. Nas democracias contemporâneas, a luta pela alternância no poder é normal e legítima. O problema só desponta quando se tenta manipular as regras com o jogo em andamento, e aqueles, que são os guardiões da ordem normativa, calam-se, rendem-se, tergiversam; enfim, deixam-se entorpecer pelo poder.
A partir daí argumentos de toda ordem ingressam no discurso político ou judicial com manifesto objetivo de justificar casuísmos e mascarar interesses inconfessáveis. Essa realidade, forçosamente, induz a outra: faz-se necessária a domesticação do poder. A classe dirigente, os governantes não têm o direito de serem vulneráveis ao ópio do poder. Logo, a formação de uma consciência coletiva em torno da idéia de que o poder não é um fim em si mesmo, senão um instrumento indispensável à realização do bem comum, é condição sem a qual os cidadãos jamais terão a certeza de que vale a pena confiar nos juízes e nos políticos.
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(1) DESIDÉRIO, Murcho. KARL MARX. Revista Livros, 2000. Disponível em: http://www.criticanarede.com/lds_marx.html.Acesso em 27/01/2006.
(2) Vale anotar que na sua Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, Marx se reporta à religião como modo de produção social. Não somente à crença num certo deus. A religião na Idade Média, por exemplo, não era senão a expressão do poder religioso. Com efeito, entre os antigos, em Atenas e Roma, o modo de produção social, que, frise-se, não se confunde com modo de produção de bens materiais, girava em torno da política, na Idade Média imperava a religiosidade, no Mundo Moderno a prevalência dos interesses materiais foi a tônica. Na Era Contemporânea o modo de produção capitalista se destacou. E, hoje, no Mundo globalizado, não há quem ponha em dúvida a primazia da informação perante os outros modos de produção.

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