sábado, 4 de outubro de 2008

Perda de espaço

Suprema Corte americana está perdendo seu prestígio

por Vinicius Furuie

A influência da Suprema Corte norte-americana sobre outros tribunais constitucionais do mundo está diminuindo porque os Estados Unidos não são mais um modelo de democracia. A política externa americana é responsável por parte dessa má reputação. “Depois de algumas ações do atual governo Bush, basicamente o mundo inteiro nos odeia”, disse a professora norte-americana Toni Fine, da Universidade Fordham, que fica em Nova York, durante palestra proferida na sede do Tribunal Regional Federal da 3ª Região nessa sexta-feira (3/10).

Dentre as ações responsáveis pela má reputação dos Estados Unidos, a professora enumerou casos que colocam em dúvida o comprometimento do governo norte-americano com os direitos humanos, como as recentes revelações de tortura nas prisões militares de Guantánamo, em Cuba, e Abu Ghraib, no Iraque.

A política externa estadunidense também gerou mal-estar em outras nações democráticas quando o país rejeitou tomar parte no Protocolo de Quioto, um acordo para reduzir as emissões de gases causadores do efeito estufa, e não ratificou tratado sobre o Tribunal Penal Internacional, que tem poder de julgar cidadãos dos países signatários acusados de genocídio e crimes contra a humanidade. A professora defendeu que os Estados Unidos adotem medidas para reverter essa tendência e busque se integrar ao sistema judicial internacional.

A professora observou que os Estados Unidos nunca foram conhecidos mundialmente por exportar produtos como vinhos ou calçados. A principal commoddity americana seria a jurisprudência criada pela Suprema Corte e, segundo Toni, “estamos perdendo essa esfera de influência. Em alguns casos, a Corte Européia de Direitos Humanos ou mesmo a Suprema Corte do Canadá já são mais influentes”. Para mostrar a queda no prestígio, a professora relatou que as referências à Suprema Corte americana pela corte equivalente da Austrália caíram de 208 em 1995 para 72 casos em 2005.

Para Toni, parte da culpa pela perda de prestígio também é dos próprios juízes que integram a corte mais alta dos EUA. Em recente julgamento, o mexicano Jose Ernesto Medellín foi condenado à pena de morte e executado no estado do Texas sem que lhe fosse permitida a assistência consular garantida pela Convenção de Viena de 1963, da qual os EUA são signatários. Apesar do apelo do Tribunal Internacional de Haia, a Holanda, para que o condenado tivesse direito a um novo julgamento, a Suprema Corte americana decidiu que não. “Essa atitude foi recebida mundialmente como um insulto”, contou a professora.

Toni Fine também acusou a corte constitucional americana de ser impermeável à influência externa. Para ela, essa falta de reciprocidade está minando a admiração que a corte inspirava. Recentemente, a Suprema Corte virou palco de uma virulenta discussão entre seus juízes sobre a validade de citar decisões estrangeiras em seus votos. Um dos membros tachou a opinião de outras cortes do mundo de irrelevante. Outro juiz defendeu o uso “ornamental” de decisões de outros países afirmando que há uma base comum de dignidade humana e que os americanos devem tentar aprender como outros povos interpretam a palavra liberdade. A polêmica espalhou-se pela mídia e pelo congresso americano que, em 2005, chegou a propor atos normativos proibindo a citação de cortes estrangeiras em decisões judiciais. O projeto não chegou a ser votado.

Revista Consultor Jurídico, 4 de outubro de 2008

domingo, 31 de agosto de 2008

Jurista critica súmula das algemas editada pelo STF



O STF (Supremo Tribunal Federal) somente poderia ter editado a Súmula 11, no julgamento do uso de algemas, se houvessem inúmeras e reiteradas decisões num mesmo sentido sobre casos semelhantes, o que não foi o caso, posto que sobre o uso de algemas não existiam os precedentes necessários. A avaliação é do jurista Dalmo de Abreu Dallari, profundo conhecedor da Constituição brasileira.

“Súmula quer dizer síntese, pois o tribunal sintetiza em uma mesma decisão tudo aquilo que ele já vinha dizendo. O tribunal estabelece que a partir de um determinado momento, nesses casos, as decisões da Corte serão sempre assim”, afirmou.

Para Dallari, o STF também avançou um pouco o sinal ao pormenorizar as situações em que se considerará ter havido o nepotismo. O jurista conversou com Última Instância sobre as críticas de que o Supremo tem avançado na esfera Legislativa em julgamentos recente. Dallari disse que não há uma linha que defina competência dos Poderes. O Judiciário é complementador da função legislativa quando ele interpreta uma norma constitucional. Nesse caso ele avança além daquilo que foi legislado, procurando as condições de aplicação do que está previsto na Constituição.

“Pode-se dizer que, de certa forma, o Poder Judiciário complementa a função Legislativa. Porém, isso não é invasão da função legislativa. O Judiciário apenas faz a interpretação e a complementação da omissão do Legislativo para a garantia de eficácia do caso concreto”, ressaltou Dallari.

Ele enfatizou a necessidade de as normas emanarem dos outros dois Poderes. “De maneira alguma existe a possibilidade do Poder Judiciário legislar. Ele apenas complementa o que já está na Constituição, visando dar condições para a aplicação”, disse.

Mandado de injunção

Avaliando eventuais possibilidades de um Poder extrapolar a sua competência originária, o jurista mencionou o mandado de injunção, cuja criação disse considerar uma inovação da Constituição de 1988.

“[O mandado] é extremamente importante para abrir um caminho para efetivação de um direito já constitucionalmente previsto”, afirma. “Quando o Supremo concede o mandado de injunção, ele não cria o direito. Para que possa haver a concessão, é necessário que o direito já esteja previsto na Constituição, ainda que falte o meio mais pormenorizado de dar eficácia àquilo que está no texto constitucional.”

Sobre o instituto, Dallari ressalvou que “ao julgar um mandado de injunção, o STF cria normas, complementando a Constituição para o caso concreto, mas não para todos os casos. Ele não faz uma lei”.

Com Última Instância, domingo, 31 de agosto de 2008

“Juízes legisladores?”

José Marcelo Vigliar

O título da presente coluna é o mesmo de uma das mais importantes obras de Mauro Cappelletti.

As semelhanças findam aqui.

Se é fato que o juiz não legisla (e nem deve), também é verdade que, no nosso ordenamento jurídico, não constitui novidade o fato de determinadas decisões judiciais apresentarem eficácia muito parecida com a das leis. Parecida, contudo, acrescida de um poder: o advento da imutabilidade de seus efeitos (coisa julgada material), não permite que nem mesmo o legislador as modifique.

Antes de prosseguir, pare um instante e reflita sobre as inúmeras possibilidades decisões judiciais serem providas de eficácia erga omnes.

Claro que isso não é novidade: seja nas ações de controle direto da constitucionalidade, seja nas demandas coletivas, esse fenômeno se opera há décadas no Brasil.

Lembro, apenas para ilustrar, o que prevê o artigo 18 da Lei 4.717 de 1965. Essa e outras leis (7.347/85, 8.078/90, a própria Emenda Constitucional 45/2004), obviamente, não foram feitas pelos juízes, tampouco decorrem de atividade jurisdicional.

Quem as teria concebido? Obviamente, não são fruto do “Holy Ghost”. Tampouco as recentes reformas processuais decorrem de atividades paranormais.

Outros “espíritos” (fantasmas, na verdade), parecem atuar.

Vejamos a matéria publicada em 25 de agosto de 2008, no portal UOL, para compreender parte desse fenômeno.

Lendo-a, fica claro que o ministro aposentado do STF (Supremo Tribunal Federal), Sepúlveda Pertence, tinha apenas parcela de razão, quando destacou que a lei, que recentemente se tornou vítima diante dos supostos abusos que, para alguns, o STF vem cometendo, mereceria toda a nossa desconfiança, sendo incapaz de servir aos propósitos que a justificam. O posicionamento de Sepúlveda Pertence pode ser lido em antiga coluna que escrevi aqui em Última Instância, em 31 de agosto de 2007.

A situação, conforme se vê, é bem mais grave que a denunciada pelo ministro.

Segundo a matéria do UOL, os congressistas contam com "Ghost-writers das leis”, que “moldam a maioria dos projetos do Congresso”.

A entrevista deixa claro que impressões pessoais desses técnicos, ou seja, aquilo que eles julgam como válido, como necessário para a Nação, plasmam os projetos de leis, que depois são votados!

Detalhe: eles não nos representam e, em muitos casos, tampouco conhecem profundamente a matéria que opinam, a despeito de terem sido concursados. Menos ainda, os tais “consultores externos”, mencionados na matéria.

Uma singela indagação: teriam os “Ghost-writers das leis” elaborado também os recentes projetos que modificaram o próprio Texto Supremo? Por exemplo, seria a EC 45/2004, criação fantasmagórica, ou nossos representantes do Congresso, que agora também reclamam do STF, seriam os responsáveis? Com quem eu reclamo?

Não vou imitar determinados apresentadores de televisão que, para conseguir alguns pontinhos de audiência, malham o que denominam de “nossos políticos”, como se essa classe fosse fruto de geração espontânea, como se não refletisse o seu eleitorado (que somos nós).

Contudo, é forçoso reconhecer que alguns (obviamente, nem todos), de fato, não somam condições de bem-elaborar projetos de leis razoáveis. Passaram suas vidas em outras atividades. Brasília se mostra como uma saída para que consigam uma ocupação licita, capaz de lhes proporcionar sustento e destaque, além de foro privilegiado.

Isso quer dizer que o Congresso não nos serve?

Não. Isso significa que deveriam se ocupar mais das suas finalidades. Hoje, conforme se vê, acham-se mergulhados em CPIs (necessárias, é claro), e na análise das medidas provisórias, editadas pelo Executivo que, esse sim, vem ocupando o espaço destinado ao Legislativo.

Fica o desafio: legislem e voltemos aos dias que antecederam as mais recentes reformas que envolvem a atividade do Judiciário. Muita gente iria adorar, principalmente os que vivem às custas da denominada “jurisprudência lotérica”.

Na próxima campanha eleitoral (a de 2010), certamente veremos candidatos ao Congresso Nacional afirmando: “Se for eleito, vou criar uma lei autorizando a polícia a algemar todo mundo, e vou diminuir esses poderes desse tal STF”. Trata-se de promessa factível, basta emplacá-la.

Sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Última Instância

Nepotismo: o STF pode legislar?

Luiz Flávio Gomes

No livro “Do Estado de direito constitucional e transnacional: riscos e precauções” (Gomes, L. F. e Vigo, R.L., São Paulo: Premier, 2008, página 157) analisamos, detalhadamente, os dezoito mais preocupantes riscos que rondam o denominado Estado de direito constitucional. Um deles diz respeito à “judicialização do direito”, ou seja, os juízes é que dão a configuração final do direito e isso pode ser feito de modo equivocado e autoritário.

Particularmente no que diz respeito ao STF (Supremo Tribunal Federal), ele pode criar normas obrigatórias, a partir de textos constitucionais, sem a interposição da lei e do legislador? Numa espécie de ativismo normatizante, ele pode invadir competência alheia e disciplinar assuntos ainda não cuidados pelo Poder Legislativo?

Nos últimos tempos nossa máxima Corte, sob o império do neoconstitucionalismo (Alexy, Dworkin, Zagrebelsky, Ferrajoli, Nino etc.), vem assumindo, com toda clareza, essa anômala função. Fez isso na regulamentação da fidelidade partidária, disciplinou depois os limites do uso das algemas (Súmula Vinculante 11) e, agora, acaba editar a Súmula Vinculante 13, que cuida da proibição do nepotismo, direto ou cruzado (nos três poderes).

O Senado havia aprovado regras sobre o nepotismo em 1997. Desde essa época a Câmara dos Deputados empurra o assunto com a barriga. Uma das principais razões para a edição da Súmula Vinculante 13, pelo STF, reside nessa omissão legislativa. Durante décadas essa Corte suprema, sob o império da visão legalista (todo o direito está fundado na lei), sempre aceitou servilmente a renitente omissão do legislador. Dizia-se: sem lei nada pode ser feito.

Agora, com a vigência da matriz constitucionalista, considerando-se que a lei foi destronada e que a importância do legislador foi mitigada, uma vez constatado o vácuo legislativo, vem o STF assumindo uma nova postura, a de regrador geral do país. Ou seja: tolerância zero para as omissões legislativas. Se quem dá as regras tem as rédeas na mão, parece lícito concluir que o STF, decisivamente, no século XXI, está assumindo o posto de senhor do direito.

Alguns parlamentares, pouco afeitos ao novo paradigma do neoconstitucionalismo, vêm se insurgindo contra as recentes decisões do STF. Falam em invasão de competência, esvaziamento do legislativo etc. As críticas, de um modo geral, não procedem porque o STF, ao editar súmulas vinculantes, está agindo dentro do que lhe permite a Constituição Federal (aprovada pelo próprio Congresso Nacional).

De qualquer modo, é certo que o novo ativismo judicial do STF está impregnado de vários riscos. O primeiro reside no enfraquecimento da democracia. Os parlamentares são os legítimos e diretos representantes do povo. Seu produto legislativo, portanto, quando compatível com a Constituição, é muito mais democrático que uma norma do judiciário.

Atuando o STF como “legislador ativo”, há sempre também o risco de aristocratização do direito, ou seja, ele pode derivar de uma casta elitizada, não da vontade dos representantes do povo. Conforme a composição do STF, pode-se ademais descambar para uma hipermoralização do direito, que significa priorizar as regras morais sobre o direito positivado.

Caso os magistrados do STF venham a se engajar com as ondas involutivas do Estado de polícia, há também o risco de hitlerização do direito (direito nazista). Se conferirem primazia para a religião, em detrimento das regras jurídicas, há o risco da fundamentalização do direito (direito fundamentalista).

Se não observarem nenhuma regra vigente no momento das decisões, pode-se chegar à alternativização do direito (direito alternativo). O direito construído pelo STF, de outro lado, pode resultar absurdamente antigarantista, sendo que essa é a censura que muitos já estão fazendo em relação à Súmula Vinculante 5, que dispensa a presença de advogado nos processos disciplinares.

Para se evitar a ocorrência de qualquer um desses riscos, quais precauções podem ser tomadas? Várias: o Poder Legislativo não pode ser um poder omisso. De outro lado, impõe-se melhorar a técnica legislativa e, ao mesmo tempo, o legislador não pode ter pretensões monopolizantes, deve fazer leis mais modestas, mais genéricas.

É preciso, ademais, justificar melhor suas opções legisferantes, evitando-se a produção autoritária de normas. O Poder Legislativo, embora eleito diretamente pelo povo, não deveria nunca mandar à sanção presidencial uma nova lei, sem antes ouvir, depois de redigido o texto, uma comissão de especialistas no assunto.

E os magistrados do STF, que devem fazer? Se os juízes dão a última configuração do direito, impõe-se descobri-lo profundamente. De outro lado, mais cultura constitucional, mais filosofia jurídica e, acima de tudo, vigilância permanente no seu autocontrole.

O self-restaint deve conduzir tais juízes à ponderação, ao equilíbrio e à reflexão. O confronto de opiniões é inevitável, assim como a consulta à jurisprudência constitucional dos tribunais e países que contam com similitude cultural com o Brasil.

Por ora o STF vem “legislando” adequadamente, mas no exercício dessa função não pode se julgar soberano, nem soberbo. O risco de uma produção legislativa autoritária nunca pode ser menosprezado.

Última Instância, terça-feira, 26 de agosto de 2008

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Pensamento

As tensões da modernidade


Boaventura de Sousa Santos*

Sumário

Acerca das globalizações
Os direitos humanos enquanto guião emancipatório
A hermenêutica diatópica
Conclusão


Nos últimos tempos, tenho observado com alguma perplexidade a forma como os direitos humanos se transformaram na linguagem da política progressista. De facto, durante muitos anos, após a Segunda Guerra Mundial, os direitos humanos foram parte integrante da política da Guerra Fria, e como tal foram considerados pela esquerda. Duplos critérios na avaliação das violações dos direitos humanos, complacência para com ditadores amigos, defesa do sacrifício dos direitos humanos em nome dos objectivos do desenvolvimento — tudo isto tornou os direitos humanos suspeitos enquanto guião emancipatório. Quer nos países centrais, quer em todo o mundo em desenvolvimento, as forças progressistas preferiram a linguagem da revolução e do socialismo para formular uma política emancipatória. E, no entanto, perante a crise aparentemente irreversível destes projectos de emancipação, essas mesmas forças progressistas recorrem hoje aos direitos humanos para reinventar a linguagem da emancipação. É como se os direitos humanos fossem invocados para preencher o vazio deixado pelo socialismo. Poderão realmente os direitos humanos preencher tal vazio? A minha resposta é um sim muito condicional. O meu objectivo neste trabalho é identificar as condições em que os direitos humanos podem ser colocados ao serviço de uma política progressista e emancipatória. Tal tarefa exige que sejam claramente entendidas as tensões dialécticas que informam a modernidade ocidental. A crise que hoje afecta estas tensões assinala, melhor que qualquer outra coisa, os problemas que a modernidade ocidental actualmente defronta. Em minha opinião, a política de direitos humanos deste final de século é um factor-chave para compreender tal crise.

Identifico três tensões dialécticas. A primeira ocorre entre regulação social e emancipação social. Tenho vindo a afirmar que o paradigma da modernidade se baseia numa tensão dialéctica entre regulação social e emancipação social, a qual está presente, mesmo que de modo diluído, na divisa positivista "ordem e progresso". Neste final de século, esta tensão deixou de ser uma tensão criativa. A emancipação deixou de ser o outro da regulação para se tornar no duplo da regulação. Enquanto, até finais dos anos sessenta, as crises de regulação social suscitavam o fortalecimento das políticas emancipatórias, hoje a crise da regulação social — simbolizada pela crise do Estado regulador e do Estado-Providência — e a crise da emancipação social — simbolizada pela crise da revolução social e do socialismo enquanto paradigma da transformação social radical — são simultâneas e alimentam-se uma da outra. A política dos direitos humanos, que foi simultaneamente uma política reguladora e uma política emancipadora, está armadilhada nesta dupla crise, ao mesmo tempo que é sinal do desejo de a ultrapassar.

A segunda tensão dialéctica ocorre entre o Estado e a sociedade civil. O Estado moderno, não obstante apresentar-se como um Estado minimalista, é, potencialmente, um Estado maximalista, pois a sociedade civil, enquanto o outro do Estado, auto-reproduz-se através de leis e regulações que dimanam do Estado e para as quais não parecem existir limites, desde que as regras democráticas da produção de leis sejam respeitadas. Os direitos humanos estão no cerne desta tensão: enquanto a primeira geração de direitos humanos (os direitos cívicos e políticos) foi concebida como uma luta da sociedade civil contra o Estado, considerado como o principal violador potencial dos direitos humanos, a segunda e terceira gerações (direitos económicos e sociais e direitos culturais, da qualidade de vida, etc) pressupõem que o Estado é o principal garante dos direitos humanos.

Por fim, a terceira tensão ocorre entre o Estado-nação e o que designamos por globalização. O modelo político da modernidade ocidental é um modelo de Estados-nação soberanos, coexistindo num sistema internacional de Estados igualmente soberanos — o sistema interestatal. A unidade e a escala privilegiadas, quer da regulação social quer da emancipação social, é o Estado-nação. O sistema interestatal foi sempre concebido como uma sociedade mais ou menos anárquica, regida por uma legalidade muito ténue, e mesmo o internacionalismo da classe operária sempre foi mais uma aspiração do que uma realidade. Hoje, a erosão selectiva do Estado-nação, imputável à intensificação da globalização, coloca a questão de saber se, quer a regulação social, quer a emancipação social, deverão ser deslocadas para o nível global. É neste sentido que já se começou a falar em sociedade civil global, governo global e equidade global. Na primeira linha deste processo, está o reconhecimento mundial da política dos direitos humanos. A tensão, porém, repousa, por um lado, no facto de tanto as violações dos direitos humanos como as lutas em defesa deles continuarem a ter uma decisiva dimensão nacional, e, por outro lado, no facto de, em aspectos cruciais, as atitudes perante os direitos humanos assentarem em pressupostos culturais específicos. A política dos direitos humanos é, basicamente, uma política cultural. Tanto assim é que poderemos mesmo pensar os direitos humanos como sinal do regresso do cultural, e até mesmo do religioso, em finais de século. Ora, falar de cultura e de religião é falar de diferença, de fronteiras, de particularismos. Como poderão os direitos humanos ser uma política simultaneamente cultural e global?

Nesta ordem de ideias, o meu objectivo é desenvolver um quadro analítico capaz de reforçar o potencial emancipatório da política dos direitos humanos no duplo contexto da globalização, por um lado, e da fragmentação cultural e da política de identidades, por outro. A minha intenção é justificar uma política progressista de direitos humanos com âmbito global e com legitimidade local.

Acerca das globalizações

Começarei por especificar o que entendo por globalização. A globalização é muito difícil de definir. Muitas definições centram-se na economia, ou seja, na nova economia mundial que emergiu nas últimas duas décadas como consequência da intensificação vertiginosa da transnacionalização da produção de bens e serviços e dos mercados financeiros — um processo através do qual as empresas multinacionais ascenderam a uma preeminência sem precedentes como actores internacionais. Para os meus objectivos analíticos, privilegio, no entanto, uma definição de globalização mais sensível às dimensões sociais, políticas e culturais. Aquilo que habitualmente designamos por globalização são, de facto, conjuntos diferenciados de relações sociais; diferentes conjuntos de relações sociais dão origem a diferentes fenómenos de globalização. Nestes termos, não existe estritamente uma entidade única chamada globalização; existem, em vez disso, globalizações; em rigor, este termo só deveria ser usado no plural. Qualquer conceito mais abrangente deve ser de tipo processual e não substantivo. Por outro lado, enquanto feixes de relações sociais, as globalizações envolvem conflitos e, por isso, vencedores e vencidos. Frequentemente, o discurso sobre globalização é a história dos vencedores contada pelos próprios. Na verdade, a vitória é aparentemente tão absoluta que os derrotados acabam por desaparecer totalmente de cena.

Proponho, pois, a seguinte definição: a globalização é o processo pelo qual determinada condição ou entidade local estende a sua influência a todo o globo e, ao fazê-lo, desenvolve a capacidade de designar como local outra condição social ou entidade rival.

As implicações mais importantes desta definição são as seguintes. Em primeiro lugar, perante as condições do sistema-mundo ocidental não existe globalização genuína; aquilo a que chamamos globalização é sempre a globalização bem sucedida de determinado localismo. Por outras palavras, não existe condição global para a qual não consigamos encontrar uma raiz local, uma imersão cultural específica. Na realidade, não consigo pensar uma entidade sem tal enraizamento local; o único candidato possível, mas improvável, seria a arquitectura interior dos aeroportos. A segunda implicação é que a globalização pressupõe a localização. De facto, vivemos tanto num mundo de localização como num mundo de globalização. Portanto, em termos analíticos, seria igualmente correcto se a presente situação e os nossos tópicos de investigação se definissem em termos de localização, em vez de globalização. O motivo por que é preferido o último termo é, basicamente, o facto de o discurso científico hegemónico tender a privilegiar a história do mundo na versão dos vencedores.

Existem muitos exemplos de como a globalização pressupõe a localização. A língua inglesa enquanto língua franca é um desses exemplos. A sua propagação enquanto língua global implicou a localização de outras línguas potencialmente globais, nomeadamente a língua francesa. Quer isto dizer que, uma vez identificado determinado processo de globalização, o seu sentido e explicação integrais não podem ser obtidos sem se ter em conta os processos adjacentes de relocalização com ele ocorrendo em simultâneo ou sequencialmente. A globalização do sistema de estrelato de Hollywood contribuiu para a etnicização do sistema de estrelato do cinema hindu. Analogamente, os actores franceses ou italianos dos anos 60 — de Brigitte Bardot a Alain Delon, de Marcello Mastroiani a Sofia Loren — que simbolizavam então o modo universal de representar, parecem hoje, quando revemos os seus filmes, provincianamente europeus, se não mesmo curiosamente étnicos. A diferença do olhar reside em que, de então para cá, o modo de representar holliwoodesco conseguiu globalizar-se. Para dar um exemplo de uma área totalmente diferente, à medida que se globaliza o hamburger ou a pizza, localiza-se o bolo de bacalhau português ou a feijoada brasileira, no sentido em que serão cada vez mais vistos como particularismos típicos da sociedade portuguesa ou brasileira.

Uma das transformações mais frequentemente associadas à globalização é a compressão tempo-espaço, ou seja, o processo social pelo qual os fenómenos se aceleram e se difundem pelo globo. Ainda que aparentemente monolítico, este processo combina situações e condições altamente diferenciadas e, por esse motivo, não pode ser analisado independentemente das relações de poder que respondem pelas diferentes formas de mobilidade temporal e espacial. Por um lado, existe a classe capitalista transnacional, aquela que realmente controla a compressão tempo-espaço e que é capaz de a transformar a seu favor. Existem, por outro lado, as classes e grupos subordinados, como os trabalhadores migrantes e os refugiados, que nas duas últimas décadas têm efectuado bastante movimentação transfronteiriça, mas que não controlam, de modo algum, a compressão tempo-espaço. Entre os executivos das empresas multinacionais e os emigrantes e refugiados, os turistas representam um terceiro modo de produção da compressão tempo-espaço.

Existem ainda os que contribuem fortemente para a globalização mas, não obstante, permanecem prisioneiros do seu tempo-espaço local. Os camponeses da Bolívia, do Perú e da Colômbia, ao cultivarem coca, contribuem decisivamente para uma cultura mundial da droga, mas eles próprios permanecem "localizados" nas suas aldeias e montanhas como desde sempre estiveram. Tal como os moradores das favelas do Rio, que permanecem prisioneiros da vida urbana marginal, enquanto as suas canções e as suas danças, sobretudo o samba, constituem hoje parte de uma cultura musical globalizada.

Finalmente, e ainda noutra perspectiva, a competência global requer, por vezes, o acentuar da especificidade local. Muitos dos lugares turísticos de hoje têm de vincar o seu carácter exótico, vernáculo e tradicional para poderem ser suficientemente atractivos no mercado global de turismo.

Para dar conta destas assimetrias, a globalização, tal como sugeri, deve ser sempre considerada no plural. Por outro lado, há que considerar diferentes modos de produção da globalização. Distingo quatro modos de produção da globalização, os quais, em meu entender, dão origem a quatro formas de globalização.

A primeira forma de globalização é o localismo globalizado. Consiste no processo pelo qual determinado fenómeno local é globalizado com sucesso, seja a actividade mundial das multinacionais, a transformação da língua inglesa em língua franca, a globalização do fast food americano ou da sua música popular, ou a adopção mundial das leis de propriedade intelectual ou de telecomunicações dos EUA.

À segunda forma de globalização chamo globalismo localizado. Consiste no impacto específico de práticas e imperativos transnacionais nas condições locais, as quais são, por essa via, desestruturadas e reestruturadas de modo a responder a esses imperativos transnacionais. Tais globalismos localizados incluem: enclaves de comércio livre ou zonas francas; desflorestação e destruição maciça dos recursos naturais para pagamento da dívida externa; uso turístico de tesouros históricos, lugares ou cerimónias religiosos, artesanato e vida selvagem; dumping ecológico ("compra" pelos países do Terceiro Mundo de lixos tóxicos produzidos nos países capitalistas centrais para gerar divisas externas); conversão da agricultura de subsistência em agricultura para exportação como parte do "ajustamento estrutural"; etnicização do local de trabalho (desvalorização do salário pelo facto de os trabalhadores serem de um grupo étnico considerado "inferior" ou "menos exigente").

A divisão internacional da produção da globalização assume o seguinte padrão: os países centrais especializam-se em localismos globalizados, enquanto aos países periféricos cabe tão-só a escolha de globalismos localizados. O sistema-mundo é uma trama de globalismos localizados e localismos globalizados.

Todavia, a intensificação de interacções globais pressupõe outros dois processos, os quais não podem ser correctamente caracterizados, nem como localismos globalizados, nem como globalismos localizados. Designo o primeiro por cosmopolitismo. As formas predominantes de dominação não excluem aos Estados-nação, regiões, classes ou grupos sociais subordinados a oportunidade de se organizarem transnacionalmente na defesa de interesses percebidos como comuns, e de usarem em seu benefício as possibilidades de interacção transnacional criadas pelo sistema mundial. As actividades cosmopolitas incluem, entre outras, diálogos e organizações Sul-Sul, organizações mundiais de trabalhadores (a Federação Mundial de Sindicatos e a Confederação Internacional dos Sindicatos Livres), filantropia transnacional Norte-Sul, redes internacionais de assistência jurídica alternativa, organizações transnacionais de direitos humanos, redes mundiais de movimentos feministas, organizações não governamentais (ONG's) transnacionais de militância anticapitalista, redes de movimentos e associações ecológicas e de desenvolvimento alternativo, movimentos literários, artísticos e científicos na periferia do sistema mundial em busca de valores culturais alternativos, não imperialistas, empenhados em estudos sob perspectivas pós-coloniais ou subalternas, etc, etc.

O outro processo que não pode ser adequadamente descrito, seja como localismo globalizado, seja como globalismo localizado, é a emergência de temas que, pela sua natureza, são tão globais como o próprio planeta e aos quais eu chamaria, recorrendo ao direito internacional, o património comum da humanidade. Trata-se de temas que apenas fazem sentido enquanto reportados ao globo na sua totalidade: a sustentabilidade da vida humana na Terra, por exemplo, ou temas ambientais como a protecção da camada de ozono, a preservação da Amazónia, da Antártida, da biodiversidade ou dos fundos marinhos. Incluo ainda nesta categoria a exploração do espaço exterior, da lua e de outros planetas, uma vez que as interacções físicas e simbólicas destes com a terra são também património comum da humanidade. Todos estes temas se referem a recursos que, pela sua natureza, têm de ser geridos por fideicomissos da comunidade internacional em nome das gerações presentes e futuras.

A preocupação com o cosmopolitismo e com o património comum da humanidade conheceu grande desenvolvimento nas últimas décadas, mas também fez surgir poderosas resistências. O património comum da humanidade, em especial, tem estado sob constante ataque por parte de países hegemónicos, sobretudo dos Estados Unidos. Os conflitos, as resistências, as lutas e as coligações em torno do cosmopolitismo e do património comum da humanidade demonstram que aquilo a que chamamos globalização é, na verdade, um conjunto de arenas de lutas transfronteiriças.

Neste contexto é útil distinguir entre globalização de-cima-para-baixo e globalização de-baixo-para-cima, ou entre globalização hegemónica e globalização contra-hegemónica. O que eu denomino localismo globalizado e globalismo localizado são globalizações de-cima-para-baixo; cosmopolitismo e património comum da humanidade são globalizações de-baixo-para-cima.

Os direitos humanos enquanto guião emancipatório

A complexidade dos direitos humanos reside em que eles podem ser concebidos, quer como forma de localismo globalizado, quer como forma de cosmopolitismo, ou, por outras palavras, quer como globalização hegemónica, quer como globalização contra-hegemónica. Proponho-me de seguida identificar as condições culturais através das quais os direitos humanos podem ser concebidos como cosmopolitismo ou globalização contra-hegemónica. A minha tese é que, enquanto forem concebidos como direitos humanos universais, os direitos humanos tenderão a operar como localismo globalizado — uma forma de globalização de-cima-para-baixo. Serão sempre um instrumento do "choque de civilizações" tal como o concebe Samuel Huntington (1993), ou seja, como arma do Ocidente contra o resto do mundo ("the West against the rest"). A sua abrangência global será obtida à custa da sua legitimidade local. Para poderem operar como forma de cosmopolitismo, como globalização de-baixo-para-cima ou contra-hegemónica, os direitos humanos têm de ser reconceptualizados como multiculturais. O multiculturalismo, tal como eu o entendo, é pré-condição de uma relação equilibrada e mutuamente potenciadora entre a competência global e a legitimidade local, que constituem os dois atributos de uma política contra-hegemónica de direitos humanos no nosso tempo.

É sabido que os direitos humanos não são universais na sua aplicação. Actualmente, são consensualmente identificados quatro regimes internacionais de aplicação de direitos humanos: o europeu, o inter-americano, o africano e o asiático. Mas serão os direitos humanos universais enquanto artefacto cultural, um tipo de invariante cultural, parte significativa de uma cultura global? Todas as culturas tendem a considerar os seus valores máximos como os mais abrangentes, mas apenas a cultura ocidental tende a formulá-los como universais. Por isso mesmo, a questão da universalidade dos direitos humanos trai a universalidade do que questiona pelo modo como o questiona. Por outras palavras, a questão da universalidade é uma questão particular, uma questão específica da cultura ocidental.

O conceito de direitos humanos assenta num bem conhecido conjunto de pressupostos, todos eles tipicamente ocidentais, designadamente: existe uma natureza humana universal que pode ser conhecida racionalmente; a natureza humana é essencialmente diferente e superior à restante realidade; o indivíduo possui uma dignidade absoluta e irredutível que tem de ser defendida da sociedade ou do Estado; a autonomia do indivíduo exige que a sociedade esteja organizada de forma não hierárquica, como soma de indivíduos livres (Panikkar, 1984: 30). Uma vez que todos estes pressupostos são claramente ocidentais e facilmente distinguíveis de outras concepções de dignidade humana em outras culturas, teremos de perguntar por que motivo a questão da universalidade dos direitos humanos se tornou tão acesamente debatida. Ou por que razão a universalidade sociológica desta questão se sobrepôs à sua universalidade filosófica.

Se observarmos a história dos direitos humanos no período imediatamente a seguir à Segunda Grande Guerra, não é difícil concluir que as políticas de direitos humanos estiveram em geral ao serviço dos interesses económicos e geo-políticos dos Estados capitalistas hegemónicos. Um discurso generoso e sedutor sobre os direitos humanos permitiu atrocidades indescritíveis, as quais foram avaliadas de acordo com revoltante duplicidade de critérios. Escrevendo em 1981 sobre a manipulação da temática dos direitos humanos nos Estados Unidos pelos meios de comunicação social, Richard Falk identifica uma "política de invisibilidade" e uma "política de supervisibilidade". Como exemplos da política de invisibilidade, menciona Falk a ocultação total, pelos media, das notícias sobre o trágico genocídio do povo Maubere em Timor Leste (que ceifou mais de 300.000 vidas) e a situação dos cerca de cem milhões de "intocáveis" na Índia. Como exemplos da política de supervisibilidade, Falk menciona a exuberância com que os atropelos pós-revolucionários dos direitos humanos no Irão e no Vietname foram relatados nos Estados Unidos. A verdade é que o mesmo pode dizer-se dos países da União Europeia, sendo o exemplo mais gritante justamente o silêncio mantido sobre o genocídio do povo maubere, escondido dos europeus durante uma década, assim facilitando o contínuo e próspero comércio com a Indonésia.

A marca ocidental, ou melhor, ocidental-liberal do discurso dominante dos direitos humanos pode ser facilmente identificada em muitos outros exemplos: na Declaração Universal de 1948, elaborada sem a participação da maioria dos povos do mundo; no reconhecimento exclusivo de direitos individuais, com a única excepção do direito colectivo à autodeterminação, o qual, no entanto, foi restringido aos povos subjugados pelo colonialismo europeu; na prioridade concedida aos direitos cívicos e políticos sobre os direitos económicos, sociais e culturais e no reconhecimento do direito de propriedade como o primeiro e, durante muitos anos, o único direito económico.

Mas há também um outro lado desta questão. Em todo o mundo, milhões de pessoas e milhares de ONG's têm vindo a lutar pelos direitos humanos, muitas vezes correndo grandes riscos, em defesa de classes sociais e grupos oprimidos, em muitos casos vitimizados por Estados capitalistas autoritários. Os objectivos políticos de tais lutas são frequentemente explícita ou implicitamente anticapitalistas. Gradualmente, foram-se desenvolvendo discursos e práticas contra-hegemónicos de direitos humanos, foram sendo propostas concepções não ocidentais de direitos humanos, foram-se organizando diálogos interculturais de direitos humanos. Neste domínio, a tarefa central da política emancipatória do nosso tempo consiste em transformar a conceptualização e prática dos direitos humanos de um localismo globalizado num projecto cosmopolita.

Passo a enumerar as principais premissas de uma tal transformação. A primeira premissa é a superação do debate sobre universalismo e relativismo cultural. Trata-se de um debate intrinsecamente falso, cujos conceitos polares são igualmente prejudiciais para uma concepção emancipatória de direitos humanos. Todas as culturas são relativas, mas o relativismo cultural enquanto atitude filosófica é incorrecto. Todas as culturas aspiram a preocupações e valores universais, mas o universalismo cultural, enquanto atitude filosófica, é incorrecto. Contra o universalismo, há que propor diálogos interculturais sobre preocupações isomórficas. Contra o relativismo, há que desenvolver critérios políticos para distinguir política progressista de política conservadora, capacitação de desarme, emancipação de regulação. Na medida em que o debate despoletado pelos direitos humanos pode evoluir para um diálogo competitivo entre culturas diferentes sobre os princípios de dignidade humana, é imperioso que tal competição induza as coligações transnacionais a competir por valores ou exigências máximos, e não por valores ou exigências mínimos (quais são os critérios verdadeiramente mínimos? os direitos humanos fundamentais? os menores denominadores comuns?). A advertência frequentemente ouvida hoje contra os inconvenientes de sobrecarregar a política de direitos humanos com novos direitos ou com concepções mais exigentes de direitos humanos (Donnelly, 1989: 109-24) é uma manifestação tardia da redução do potencial emancipatório da modernidade ocidental à emancipação de baixa intensidade possibillitada ou tolerada pelo capitalismo mundial. Direitos humanos de baixa intensidade como o outro lado de democracia de baixa intensidade.

A segunda premissa da transformação cosmopolita dos direitos humanos é que todas as culturas possuem concepções de dignidade humana, mas nem todas elas a concebem em termos de direitos humanos. Torna-se, por isso, importante identificar preocupações isomórficas entre diferentes culturas. Designações, conceitos e Weltanschauungen diferentes podem transmitir preocupações ou aspirações semelhantes ou mutuamente inteligíveis. Na secção seguinte darei alguns exemplos.

A terceira premissa é que todas as culturas são incompletas e problemáticas nas suas concepções de dignidade humana. A incompletude provém da própria existência de uma pluralidade de culturas, pois, se cada cultura fosse tão completa como se julga, existiria apenas uma só cultura. A ideia de completude está na origem de um excesso de sentido de que parecem enfermar todas as culturas, e é por isso que a incompletude é mais facilmente perceptível do exterior, a partir da perspectiva de outra cultura. Aumentar a consciência de incompletude cultural até ao seu máximo possível é uma das tarefas mais cruciais para a construção de uma concepção multicultural de direitos humanos.

A quarta premissa é que todas as culturas têm versões diferentes de dignidade humana, algumas mais amplas do que outras, algumas com um círculo de reciprocidade mais largo do que outras, algumas mais abertas a outras culturas do que outras. Por exemplo, a modernidade ocidental desdobrou-se em duas concepções e práticas de direitos humanos profundamente divergentes — a liberal e a marxista — uma dando prioridade aos direitos cívicos e políticos, a outra dando prioridade aos direitos sociais e económicos. Há que definir qual delas propõe um círculo de reciprocidade mais amplo.

Por último, a quinta premissa é que todas as culturas tendem a distribuir as pessoas e os grupos sociais entre dois princípios competitivos de pertença hierárquica. Um — o princípio da igualdade — opera através de hierarquias entre unidades homogéneas (a hierarquia de estratos sócio-económicos; a hierarquia cidadão/estrangeiro). O outro — o princípio da diferença — opera através da hierarquia entre identidades e diferenças consideradas únicas (a hierarquia entre etnias ou raças, entre sexos, entre religiões, entre orientações sexuais). Os dois princípios não se sobrepõem necessariamente e, por esse motivo, nem todas as igualdades são idênticas e nem todas as diferenças são desiguais.

Estas são as premissas de um diálogo intercultural sobre a dignidade humana que pode levar, eventualmente, a uma concepção mestiça de direitos humanos, uma concepção que, em vez de recorrer a falsos universalismos, se organiza como uma constelação de sentidos locais, mutuamente inteligíveis, e se constitui em redes de referências normativas capacitantes.

A hermenêutica diatópica

No caso de um diálogo intercultural, a troca não é apenas entre diferentes saberes, mas também entre diferentes culturas, ou seja, entre universos de sentido diferentes e, em grande medida, incomensuráveis. Tais universos de sentido consistem em constelações de topoi fortes. Os topoi são os lugares comuns retóricos mais abrangentes de determinada cultura. Funcionam como premissas de argumentação que, por não se discutirem, dada a sua evidência, tornam possível a produção e a troca de argumentos. Topoi fortes tornam-se altamente vulneráveis e problemáticos quando "usados" numa cultura diferente. O melhor que lhes pode acontecer é serem despromovidos de premissas de argumentação a meros argumentos. Compreender determinada cultura a partir dos topoi de outra cultura pode revelar-se muito difícil, se não mesmo impossível. Partindo do pressuposto de que tal não é impossível, proponho a seguir uma hermenêutica diatópica, um procedimento hermenêutico que julgo adequado para nos guiar nas dificuldades a enfrentar, ainda que não necessariamente para as superar. Na área dos direitos humanos e da dignidade humana, a mobilização de apoio social para as possibilidades e exigências emancipatórias que eles contêm só será concretizável na medida em que tais possibilidades e exigências tiverem sido apropriadas e absorvidas pelo contexto cultural local. Apropriação e absorção, neste sentido, não podem ser obtidas através da canibalização cultural. Requerem um diálogo intercultural e uma hermenêutica diatópica.

A hermenêutica diatópica baseia-se na ideia de que os topoi de uma dada cultura, por mais fortes que sejam, são tão incompletos quanto a própria cultura a que pertencem. Tal incompletude não é visível do interior dessa cultura, uma vez que a aspiração à totalidade induz a que se tome a parte pelo todo. O objectivo da hermenêutica diatópica não é, porém, atingir a completude — um objectivo inatingível — mas, pelo contrário, ampliar ao máximo a consciência de incompletude mútua através de um diálogo que se desenrola, por assim dizer, com um pé numa cultura e outro, noutra. Nisto reside o seu carácter dia-tópico.

Um exemplo de hermenêutica diatópica é a que pode ter lugar entre o topos dos direitos humanos na cultura ocidental, o topos do dharma na cultura hindu e o topos da umma na cultura islâmica. Segundo Panikkar, dharma "é o que sustenta, dá coesão e, portanto, força, a uma dada coisa, à realidade e, em última instância, aos três mundos (triloka). A justiça dá coesão às relações humanas; a moralidade mantém a pessoa em harmonia consigo mesma; o direito é o princípio do compromisso nas relações humanas; a religião é o que mantém vivo o universo; o destino é o que nos liga ao futuro; a verdade é a coesão interna das coisas... Um mundo onde a noção de Dharma é central e quase omnipresente não está preocupado em encontrar o ‘direito’ de um indivíduo contra outro ou do indivíduo perante a sociedade, mas antes em avaliar o carácter dharmico (correcto, verdadeiro, consistente) ou adharmico de qualquer coisa ou acção no complexo teantropocósmico total da realidade." (1984:39).

Vistos a partir do topos do dharma, os direitos humanos são incompletos na medida em que não estabelecem a ligação entre a parte (o indivíduo) e o todo (o cosmos), ou dito de forma mais radical, na medida em que se centram no que é meramente derivado, os direitos, em vez de se centrarem no imperativo primordial, o dever dos indivíduos de encontrarem o seu lugar na ordem geral da sociedade e de todo o cosmos. Vista a partir do dharma, e, na verdade, também a partir da umma, como veremos a seguir, a concepção ocidental dos direitos humanos está contaminada por uma simetria muito simplista e mecanicista entre direitos e deveres. Apenas garante direitos àqueles a quem pode exigir deveres. Isto explica por que razão, na concepção ocidental dos direitos humanos, a natureza não possui direitos: porque não lhe podem ser impostos deveres. Pelo mesmo motivo, é impossível garantir direitos às gerações futuras: não possuem direitos porque não possuem deveres.

Por outro lado, e inversamente, visto a partir do topos dos direitos humanos, o dharma também é incompleto, dado o seu enviesamento fortemente não-dialéctico a favor da harmonia, ocultando assim injustiças e negligenciando totalmente o valor do conflito como caminho para uma harmonia mais rica. Além disso, o dharma não está preocupado com os princípios da ordem democrática, com a liberdade e a autonomia, e negligencia o facto de, sem direitos primordiais, o indivíduo ser uma entidade demasiado frágil para evitar ser subjugado por aquilo que o transcende. Além disso, o dharma tende a esquecer que o sofrimento humano possui uma dimensão individual irredutível: não são as sociedades que sofrem, mas sim os indivíduos.

Num outro nível conceptual, pode ser ensaiada a mesma hermenêutica diatópica entre o topos dos direitos humanos e o topos da umma na cultura islâmica. Os passos do Corão em que surge a palavra umma são tão variados que o seu significado não pode ser definido com rigor. O seguinte, porém, parece ser certo: o conceito de umma refere-se sempre a entidades étnicas, linguísticas ou religiosas de pessoas que são o objecto do plano divino de salvação. À medida que a actividade profética de Maomé foi progredindo, os fundamentos religiosos da umma tornaram-se cada vez mais evidentes e, consequentemente, a umma dos árabes foi transformada na umma dos muçulmanos. Vista a partir do topos da umma, a incompletude dos direitos humanos individuais reside no facto de, com base neles, ser impossível fundar os laços e as solidariedades colectivas sem as quais nenhuma sociedade pode sobreviver, e muito menos prosperar. Exemplo disto mesmo é a dificuldade da concepção ocidental de direitos humanos em aceitar direitos colectivos de grupos sociais ou povos, sejam eles as minorias étnicas, as mulheres, as crianças ou os povos indígenas. Este é, de facto, um exemplo específico de uma dificuldade muito mais ampla: a dificuldade em definir a comunidade enquanto arena de solidariedades concretas, campo político dominado por uma obrigação política horizontal. Esta ideia de comunidade, central para Rousseau, foi varrida do pensamento liberal, que reduziu toda a complexidade societal à dicotomia Estado/sociedade civil.

Mas, por outro lado, a partir do topos dos direitos humanos individuais, a umma sublinha demasiado os deveres em detrimento dos direitos e, por isso, tende a perdoar desigualdades que seriam de outro modo inadmissíveis, como a desigualdade entre homens e mulheres ou entre muçulmanos e não-muçulmanos. A hermenêutica diatópica mostra-nos que a fraqueza fundamental da cultura ocidental consiste em estabelecer dicotomias demasiado rígidas entre o indivíduo e a sociedade, tornando-se assim vulnerável ao individualismo possessivo, ao narcisismo, à alienação e à anomia. De igual modo, a fraqueza fundamental das culturas hindu e islâmica deve-se ao facto de nenhuma delas reconhecer que o sofrimento humano tem uma dimensão individual irredutível, a qual só pode ser adequadamente considerada numa sociedade não hierarquicamente organizada.

O reconhecimento de incompletudes mútuas é condição sine qua non de um diálogo intercultural. A hermenêutica diatópica desenvolve-se tanto na identificação local como na inteligibilidade translocal das incompletudes. Um bom exemplo de hermenêutica diatópica entre a cultura islâmica e a cultura ocidental no campo dos direitos humanos é dado por Abdullahi An-na'im (1990; 1992). Existe um longo debate acerca das relações entre islamismo e direitos humanos e da possibilidade de uma noção islâmica de direitos humanos. Este debate abrange um largo espectro de posições e o seu impacto ultrapassa o mundo islâmico. Embora correndo o risco de excessiva simplificação, duas posições extremas podem ser identificadas neste debate. Uma, absolutista ou fundamentalista, é sustentada por aqueles para quem o sistema jurídico religioso do Islão, a Shari'a, deve ser integralmente aplicado como o direito do Estado islâmico. Segundo esta posição, há inconsistências irreconciliáveis entre a Shari'a e a concepção ocidental dos direitos humanos, e sempre que tal ocorra a Shari'a deve prevalecer. Por exemplo, relativamente ao estatuto dos não-muçulmanos, a Shari'a determina a criação de um Estado para muçulmanos que apenas reconhece estes como cidadãos, negando aos não-muçulmanos quaisquer direitos políticos. Ainda segundo a Shari'a, a paz entre muçulmanos e não-muçulmanos é sempre problemática e os confrontos podem ser inevitáveis. Relativamente às mulheres, o problema da igualdade nem sequer se põe; a Shari'a impõe a segregação das mulheres e, em algumas interpretações mais estritas, exclui-as de toda a vida pública.

No outro extremo, encontram-se os secularistas ou modernistas, que entendem deverem os muçulmanos organizar-se em Estados seculares. O Islão é um movimento religioso e espiritual e não político e, como tal, as sociedades muçulmanas modernas são livres de organizar o seu governo do modo que julgarem conveniente e apropriado às circunstâncias. A aceitação de direitos humanos internacionais é uma questão de decisão política independente de considerações religiosas. Apenas para dar um exemplo, entre muitos, desta posição: uma lei tunisina de 1956 proibiu a poligamia com o argumento de ter deixado de ser aceitável, tanto mais que a exigência corânica de justiça no tratamento das co-esposas era impossível de realizar na prática por qualquer homem, excepto o Profeta.

An-na'im critica estas duas posições extremas. A via per mezzo que propõe pretende encontrar fundamentos interculturais para os direitos humanos, identificando as áreas de conflito entre a Shari'a e "os critérios de direitos humanos" e estabelecendo uma reconciliação ou relação positiva entre os dois sistemas. O problema da Shari'a histórica é que exclui mulheres e não-muçulmanos do campo de reciprocidade. Para o resolver, é necessária uma reforma ou reconstrução da Shari'a. O método proposto para tal "Reforma islâmica" assenta numa revisão evolucionista das fontes islâmicas, que reconsidera o contexto histórico específico em que a Shari'a foi criada pelos juristas dos séculos VIII e IX. Nesse contexto histórico específico, uma construção restritiva do Outro e da reciprocidade foi provavelmente justificada. Hoje, porém, o contexto é totalmente diferente e é possível reencontrar nas fontes originárias do Islão plena justificação para uma visão mais ampla de reciprocidade.

Seguindo os ensinamentos de Maomé, An-na'im demonstra que uma análise atenta do conteúdo do Corão e do Suna revela dois níveis ou fases da mensagem do Islão: uma, do período da Meca Antiga, e outra, do período subsequente, de Medina. A mensagem primitiva de Meca é a mensagem eterna e fundamental do Islão, que sublinha a dignidade inerente a todos os seres humanos, independentemente de sexo, religião ou raça. Esta mensagem, considerada demasiado avançada para as condições históricas do século VII (a fase de Medina), foi suspensa e a sua aplicação adiada até que no futuro as circunstâncias a tornassem possível. O tempo e o contexto, diz An-na'im, estão agora maduros para tal.

Não me cabe avaliar a validade específica desta proposta para a cultura islâmica. Esta postura é precisamente o que distingue a hermenêutica diatópica do orientalismo. O que quero realçar na abordagem de An-na'im é a tentativa de transformar a concepção de direitos humanos ocidental numa concepção intercultural que reivindica para eles a legitimidade islâmica, em vez de renunciar a ela. Em abstracto e visto de fora, é difícil ajuizar qual das abordagens, a religiosa ou a secularista, terá mais probabilidades de prevalecer num diálogo intercultural sobre direitos humanos a partir do Islão. Porém, tendo em mente que os direitos humanos ocidentais são a expressão de um profundo, se bem que incompleto, processo de secularização, sem paralelo na cultura islâmica, estaria inclinado a sugerir que, no contexto muçulmano, a energia mobilizadora necessária para um projecto cosmopolita de direitos humanos poderá gerar-se mais facilmente num quadro religioso esclarecido. Se este for o caso, a abordagem de An-na'im é muito promissora.

A hermenêutica diatópica não é tarefa para uma só pessoa, escrevendo dentro de uma única cultura. Não é, portanto, surpreendente que a abordagem de An-na'im, um genuíno exercício de hermenêutica diatópica, seja por ele conduzida com consistência desigual. Na minha perspectiva, An-na'im aceita demasiado fácil e acriticamente a ideia de direitos humanos universais. Apesar de este autor subscrever uma abordagem evolucionista e estar realmente atento ao contexto histórico da tradição islâmica, a sua interpretação resulta surpreendentemente a-histórica e ingenuamente universalista quanto à Declaração Universal dos Direitos Humanos. A hermenêutica diatópica requer, não apenas um tipo de conhecimento diferente, mas também um diferente processo de criação de conhecimento. A hermenêutica diatópica exige uma produção de conhecimento colectiva, interactiva, intersubjectiva e reticular.

A hermenêutica diatópica conduzida por An-na'im a partir da perspectiva da cultura islâmica e as lutas pelos direitos humanos organizadas pelos movimentos feministas islâmicos, seguindo as ideias da "Reforma islâmica" por ele propostas, têm de ser complementadas por uma hermenêutica diatópica conduzida a partir da perspectiva de outras culturas e, nomeadamente, da perspectiva da cultura ocidental dos direitos humanos. Este é provavelmente o único meio de integrar na cultura ocidental a noção de direitos colectivos, os direitos da natureza e das futuras gerações, bem como a noção de deveres e responsabilidades para com entidades colectivas, sejam elas a comunidade, o mundo ou mesmo o cosmos.

Mais genericamente, a hermenêutica diatópica oferece um amplo campo de possibilidades para os debates que estão actualmente a ocorrer nas diferentes regiões culturais do sistema mundial sobre os temas gerais do universalismo, relativismo, multiculturalismo, pós-colonialismo, quadros culturais da transformação social, tradicionalismo e renovação cultural. Porém, uma concepção idealista de diálogo intercultural poderá esquecer facilmente que tal diálogo só é possível através da simultaneidade temporária de duas ou mais contemporaneidades diferentes. Os parceiros no diálogo são apenas superficialmente contemporâneos; na verdade, cada um deles sente-se apenas contemporâneo da tradição histórica da sua cultura. É assim sobretudo quando as diferentes culturas envolvidas no diálogo partilham um passado de sucessivas trocas desiguais. Que possibilidades existem para um diálogo intercultural se uma das culturas em presença foi moldada por maciças e prolongadas violações dos direitos humanos perpetradas em nome da outra cultura? Quando as culturas partilham tal passado, o presente que partilham no momento de iniciarem o diálogo é, no melhor dos casos, um quid pro quo e, no pior dos casos, uma fraude. O dilema cultural que se levanta é o seguinte: dado que, no passado, a cultura dominante tornou impronunciáveis algumas das aspirações à dignidade humana por parte da cultura subordinada, será agora possível pronunciá-las no diálogo intercultural sem, ao fazê-lo, justificar e mesmo reforçar a sua impronunciabilidade?

Imperialismo cultural e epistemicídio são parte da trajectória histórica da modernidade ocidental. Após séculos de trocas culturais desiguais, será justo tratar todas as culturas de forma igual? Será necessário tornar impronunciáveis algumas aspirações da cultura ocidental para dar espaço à pronunciabilidade de outras aspirações de outras culturas? Paradoxalmente — e contrariando o discurso hegemónico —, é precisamente no campo dos direitos humanos que a cultura ocidental tem de aprender com o Sul para que a falsa universalidade atribuída aos direitos humanos no contexto imperial seja convertida, na translocalidade do cosmopolitismo, num diálogo intercultural.

O carácter emancipatório da hermenêutica diatópica não está garantido a priori e, de facto, o multiculturalismo pode ser o novo rótulo de uma política reaccionária. Basta mencionar o multiculturalismo do primeiro ministro da Malásia ou da gerontocracia chinesa quando se referem à "concepção asiática de direitos humanos" para justificar as conhecidas e as desconhecidas "Tianamens". Para prevenir esta perversão, dois imperativos interculturais devem ser aceites por todos os grupos empenhados na hermenêutica diatópica. O primeiro pode formular-se assim: das diferentes versões de uma dada cultura, deve ser escolhida aquela que representa o círculo mais amplo de reciprocidade dentro dessa cultura, a versão que vai mais longe no reconhecimento do outro. Como vimos, das duas diferentes interpretações do Corão, An-na'im escolhe a que possui o círculo mais amplo de reciprocidade, a que abrange igualmente muçulmanos e não-muçulmanos, homens e mulheres. O mesmo procedimento deve ser adoptado na cultura ocidental. Das duas versões de direitos humanos existentes na nossa cultura — a liberal e a marxista — a marxista deve ser adoptada, pois amplia para os domínios económico e social a igualdade que a versão liberal apenas considera legítima no domínio político.

O segundo imperativo intercultural pode ser enunciado do seguinte modo: uma vez que todas as culturas tendem a distribuir pessoas e grupos de acordo com dois princípios concorrentes de pertença hierárquica, e, portanto, com concepções concorrentes de igualdade e diferença, as pessoas e os grupos sociais têm o direito a ser iguais quando a diferença os inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza. Este é, consabidamente, um imperativo muito difícil de atingir e de manter. Os Estados constitucionais multinacionais como a Bélgica aproximam-se dele em alguns aspectos. Existe neste momento grande esperança de que a África do Sul venha a ser outro exemplo.

Conclusão

Na forma como são agora predominantemente entendidos, os direitos humanos são uma espécie de esperanto que dificilmente poderá tornar-se na linguagem quotidiana da dignidade humana nas diferentes regiões do globo. Compete à hermenêutica diatópica proposta neste artigo transformá-los numa política cosmopolita que ligue em rede línguas nativas de emancipação, tornando-as mutuamente inteligíveis e traduzíveis. Este projecto pode parecer demasiado utópico. Mas, como disse Sartre, antes de ser concretizada, uma ideia tem uma estranha semelhança com a utopia. Seja como for, o importante é não reduzir o realismo ao que existe, pois, de outro modo, podemos ficar obrigados a justificar o que existe, por mais injusto ou opressivo que seja.

*Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Centro de Estudos Sociais

Referências Bibliográficas

Afkhami, Mahnaz (org.) 1995 Faith and Freedom: Women's Human Rights in the Muslim World. Siracusa: Syracuse University Press.

Al Faruqi, Isma'il R. 1983 "Islam and Human Rights", The Islamic Quarterly, 27(1), 12-30.

An-na'im, Abdullahi A. (org.) 1992 Human Rights in Cross-Cultural Perspectives. A Quest for Consensus. Filadélfia: University of Pennsylvania Press.

An-na'im, Abdullahi A. 1990 Toward an Islamic Reformation. Siracusa: Syracuse University Press.

Chatterjee, Partha 1984 "Gandhi and the Critique of Civil Society", in Guha, 1984, 153-195.

Donnelly, Jack 1989 Universal Human Rights in Theory and Practice. Ithaca: Cornell University Press.

Dwyer, Kevin 1991 Arab Voices. The Human Rights Debate in the Middle East. Berkeley: University of California Press.

Falk, Richard 1981 Human Rights and State Sovereignty. New York: Holmes and Meier Publishers.

Galtung, Johan 1981 "Western Civilization: Anatomy and Pathology". Alternatives, 7, 145-169.

Guha, Ranajoit (org.) 1984 Subaltern Studies III: Writings on South Asian History and Society. Delhi: Oxford University Press.

Hassan, Riffat 1982 "On Human Rights and the Qur'anic Perspective", Journal of Ecumenical Studies 19(3), 51-65.

Huntington, Samuel 1993 "The Clash of Civilizations?", Foreign Affairs, 72(3).

Inada, Kenneth K. 1990 "A Budhist Response to the Nature of Human Rights", in Welch Jr. and Leary, 1990, 91-101.

Leites, Justin 1991 "Modernist Jurisprudence as a Vehicle for Gender Role Reform in the Islamic World, Columbia Human Rights Law Review, 22, 251-330.

Mayer, Ann Elizabeth 1991 Islam and Human Rights: Tradition and Politics. Boulder: Westview Press.

Mitra, Kana 1982 "Human Rights in Hinduism", Journal of Ecumenical Studies, 19(3), 77-84.

Nandy, Ashis 1987a "Cultural Frames for Social Transformation: A Credo", Alternatives, XII, 113-123.

Nandy, Ashis 1987b Traditions, Tyranny and Utopias. Essays in the Politics of Awareness. Oxford: Oxford University Press.

Nandy, Ashis 1988 "The Politics of Secularism and the Recovery of Religious Tolerance", Alternatives, XIII, 177-194.

Oladipo, Olusegun 1989 "Towards a Philosophical Study of African Culture: A Critique of Traditionalism", Quest, 3(2), 31-50.

Oruka, H. Odera 1990 "Cultural Fundamentals in Philosophy", Quest, 4(2), 21-37.

Pannikar, Raimundo 1984 "Is the Notion of Human Rights a Western Concept?" ,Cahier, 81, 28-47.

Pantham, Thomas 1988 "On Modernity, Rationality and Morality: Habermas and Gandhi", The Indian Journal of Social Science, 1(2), 187-208.

Pollis, Adamantia 1982 "Liberal, Socialist and Third World Perspectives of Human Rights", in Schwab and Pollis, 1982, 1-26.

Pollis, Adamantia; Schwab, P. 1979 "Human Rights: A Western Construct with Limited Applicability", in Pollis and Schwab1979, 1-18.

Pollis, Adamantia; Schwab, P. (orgs.) 1979 Human Rights: Cultural and Ideological Perspectives. New York: Prager.

Procee, Henk 1992 "Beyond Universalism and Relativism", Quest, 6(1), 45-55.

Ramose, Mogobe B. 1992 "African Democratic Traditions: Oneness, Consensus and Openness", Quest, 6(1), 63-83.

Said, Edward 1985 Orientalism. London: Penguin.

Santos, Boaventura de Sousa 1995 Toward a New Common Sense. Law, Science and Politics in the Paradigmatic Transition. New York: Routledge.

Schwab, Peter; Polis, A. (orgs.) 1982 Toward a Human Rights Framework. New York: Praeger.

Sharabi, Hisham 1992 "Modernity and Islamic Revival: The Critical Tasks of Arab Intellectuals", Contention 2(1), 127-147.

Shariati, Ali 1986 What Is to Be Done: the Enlightened Thinkers and an Islamic Renaissance. Edited by Farhang Rajaee. Houston: The Institute for Research and Islamic Studies.

Thapar, Romila 1966 "The Hindu and Buddhist Traditions", International Social Science Journal, 18(1), 31-40.

Wamba dia Wamba, Ernest 1991a "Some Remarks on Culture Development and Revolution in Africa", Journal of Historical Sociology, 4, 219-235.

Wamba dia Wamba, Ernest 1991b "Beyond Elite Politics of Democracy in Africa", Quest, 6(1), 28-42.

Welsh, Jr., Claude;Leary, Virginia (orgs.) 1990 Asian Perspectives on Human Rights. Boulder. Westview Press.

Wiredu, Kwasi 1990 "Are there Cultural Universals?" ,Quest, 4(2), 5-19.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Suprema Corte proíbe "nepotismo" em todos os níveis do Poder Público

O Supremo Tribunal Federal (STF) acaba de aprovar, por unanimidade, a 13ª Súmula Vinculante da Corte, que veda o nepotismo nos Três Poderes, no âmbito da União, dos Estados e dos municípios. O dispositivo tem de ser seguido por todos os órgãos públicos e, na prática, proíbe a contratação de parentes de autoridades e de funcionários para cargos de confiança, de comissão e de função gratificada no serviço público.

A súmula também veda o nepotismo cruzado, que ocorre quando dois agentes públicos empregam familiares um do outro como troca de favor. Ficam de fora do alcance da súmula os cargos de caráter político, exercido por agentes políticos.

Com a publicação da súmula, que deverá ocorrer em breve, será possível contestar, no próprio STF, por meio de reclamação, a contratação de parentes para cargos da administração pública direta e indireta no Judiciário, no Executivo e no Legislativo de todos os níveis da federação.

Confira o enunciado da Súmula Vinculante nº 13:

“A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica, investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança, ou, ainda, de função gratificada na Administração Pública direta e indireta, em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal.”

Fonte: STF

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Estudo aponta indiferença do Congresso aos crimes dos colarinhos-brancos

O Congresso Nacional acredita que a elite econômica do país não comete crimes e endurece a punição aos pobres. A maior parte dos projetos sobre criminalidade apresentados na Câmara e no Senado são oferecidos no início da legislatura ou em períodos de comoção nacional. A constatação é da doutora em sociologia pela Universidade de Brasília (UnB) Laura Frade no estudo "O que o Congresso Nacional brasileiro pensa sobre a criminalidade".

Um levantamento dos projetos de lei mostra que das 646 propostas sobre criminalidade, apenas duas abordavam crimes do colarinho branco, ou seja, àqueles cometidos por uma pessoa de respeitabilidade e elevado status social e sócio-econômico, no curso de sua ocupação, ocorrendo, quase sempre, uma violação de confiança. Dessas, 521 eram da Câmara e 125 do Senado. O estudo compreendeu o período legislativo entre 2003 e 2007, a Qüinquagésima Segunda Legislatura que, ao longo da história, registrou o maior número de indícios de ilegalidades cometidas por parlamentares.

A resposta para o fato de o Legislativo brasileiro ter apresentado apenas duas propostas de lei ligadas ao colarinho branco, para Laura Frade, se deve ao fato da associação entre criminoso e indivíduo pouco instruído. Em entrevista com 46 pessoas entre líderes partidários, do governo e parlamentares que atuam como referência nas votações, a maioria usou o termo “indivíduo pouco instruído” para definir um bandido.

O sistema penal faz uma seleção de criminosos, elegendo aqueles que por um estereótipo – ou no caso, uma condição social – ajustam-se ao perfil do criminoso. O Legislativo brasileiro endossa essa tese. “Se para eles (Legislativo) o bandido tem pouca educação e age por conta da desigualdade social, fica difícil conceber que um juiz cometa crimes”, frisa a autora da dissertação. Os parlamentares assumem que há falta de vontade política para debater a questão e apontam como causas o despreparo, a falta de interesse do Executivo e até o medo.

O privilégio mantido para as elites foi verificado nos projetos de lei analisados sobre criminalidade. Houve a tentativa de liberar os jogos de azar e cassinos, além da proposta de reforçar o caráter investigatório das Comissões Parlamentares de Inquéritos (CPIs), dando a elas poderes tão amplos quanto os do Judiciário. Em 98 iniciativas foram evidenciadas tendências de tratamento mais rigoroso à criminalidade. Foi considerada, por exemplo, a tipificação da atividade dos flanelinhas como crime de extorsão.

Clique aqui para ter acesso à tese.

Amanda Costa

Do Contas Abertas

domingo, 27 de abril de 2008

Ações de juízes contra mídia têm valor maior

Levantamento com processos abertos contra televisões, jornais e revistas mostra reparação média de R$ 470 mil a magistrados

Uma outra pessoa que tenha buscado no Poder Judiciário o mesmo tipo de reparação teve indenização de cerca de R$ 150 mil

LILIAN CHRISTOFOLETTI
DA REPORTAGEM LOCAL

As indenizações por danos morais fixadas em processos iniciados por juízes contra organismos de imprensa têm valor aproximadamente três vezes maior do que as estipuladas em ações movidas por pessoas de outras áreas de atuação.

A reportagem analisou as decisões proferidas em 130 processos abertos contra televisões, jornais e revistas de todo o país. Foram consideradas as diferentes instâncias e autorias.

Segundo o levantamento, o magistrado que recorreu à Justiça alegando ter se sentido ofendido por alguma reportagem obteve, em média, uma indenização de cerca de R$ 470 mil ou 1.132 salários mínimos.

Uma outra pessoa que tenha buscado no Poder Judiciário o mesmo tipo de reparação teve como resposta uma indenização menor, fixada em aproximadamente R$ 150 mil ou 361 salários mínimos.

"Eu não tinha idéia disso, estou perplexo", afirmou o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello, que disse ser inconcebível existir um tratamento diferenciado entre um magistrado e um cidadão comum (leia texto abaixo).

Se o universo dos "não-magistrados" for reduzido para as pessoas comuns, ou seja, se forem excluídos os artistas, políticos, advogados e membros do Ministério Público, a quantia estipulada judicialmente é menor, fica em torno de R$ 120 mil ou 289 salários mínimos.

Nesse valor total estão incluídos os processos movidos pelas três pessoas acusadas no caso da Escola Base, que estourou em 1994, quando inocentes foram presos por acusações improcedentes de violência contra crianças.

As indenizações fixadas em favor dos três envolvidos foram elevadas -para cada um foi definido, somando as diversas empresas jornalísticas acionadas na Justiça, cerca de R$ 2 milhões por danos morais.

Se os processos da Escola Base forem excluídos da contagem, o valor de indenização estabelecido para pessoas comuns que foram em juízo contra a imprensa se reduz para R$ 30 mil por pessoa, ou seja, cerca de 72 salários mínimos.

Instâncias

O levantamento das sentenças proferidas em diversas instâncias judiciais revelou uma tendência de os juízes das varas cíveis, de primeira instância, fixarem valores mais altos nas indenizações em geral.

Essa quantia pode ser modificada na segunda instância (Tribunais de Justiça), para mais ou para menos, e normalmente é reduzida pelos ministros do STJ (Superior Tribunal de Justiça) de Brasília, que é a terceira instância judicial.

Dificilmente casos de indenização chegam ao Supremo Tribunal Federal (STF).

Isso porque processos de reparação financeira são tidos como factuais e dependem mais de uma interpretação de cada magistrado sobre a situação reclamada. A vocação do Supremo é discutir questões constitucionais.

Segundo o levantamento da reportagem, em média, juízes de primeira instância fixaram em aproximadamente R$ 940 mil -ou 2.265 salários mínimos- as indenizações por danos morais para os colegas do Poder Judiciário.

Nos Tribunais de Justiça (segunda instância) essa média foi reduzida para R$ 236 mil (568 salários mínimos).

Quando chegou às mãos dos ministros do STJ (terceira instância), a quantia reparatória foi mantida em cerca de 500 salários mínimos (R$ 207,5 mil).

Entre os processos analisados, a indenização mais alta estipulada pelo Judiciário contra um organismo de imprensa foi dada numa ação movida pelo juiz Luiz Beethoven Giffoni Ferreira, que era titular da Vara de Infância e Juventude de Jundiaí quando foi acusado de supostas irregularidades em caso de adoção internacional de crianças em 1994.

Decisão da primeira instância condenou a Folha a pagar 500 salários mínimos relativos a cada uma das 31 reportagens sobre o caso, o que dá cerca de R$ 6,4 milhões. O processo ainda não foi analisado pelo Tribunal de Justiça.

Fonte: Folha de S. Paulo, 27/04/2008.