quarta-feira, 15 de novembro de 2006

Globalismo Jurídico - PARTE III

Finalmente, consoante compromisso assumido com os visitantes deste blog, publicaremos a seguir a III Parte e última do ensaio Globalismo jurídico: a nova face do direito, de autoria do advogado Gildson Gomes dos Santos. A Parte I foi publicada no último dia 13/11/2006, e a Parte II, no dia seguinte, neste mesmo ciberespaço.

Como já antecipamos nas postagens anteriores, o artigo tem como pano de fundo a redefinição e estruturação dos componentes do sistema jurídico, a partir do paradigma filosófico denominado procedimentalismo jurídico, cujo principal fautor é o filósofo alemão JÜRGEN HABERMAS.

Segundo G. Gomes dos Santos, as teorias fundadas na tradicional filosofia da consciência são insuficiêntes para descrever o fenômeno jurídico. Razão pela qual propõe, no seu Globalismo Jurídico (ou teoria global do direito), investigá-lo a partir de dois modelos complementares entre si, que denomina macrodireito e microdireito.

O resultado é surpreendente. Pela via formal, G. Gomes dos Santos consegue estremar as espécies normativas (princípios e regras) dos "postulados normativos", que ele passa denominar de postulados jurídicos, bem como formula um novo conceito de Direito Positivo.

O esboço da teoria global do direito se conclui, portanto, com a publicação deste última parte: "Globalismo Jurídico - III". Vamos a ela, então.




Globalismo jurídico: a nova face do direito (III)


Gildson Gomes dos Santos.
Advogado militante em Ribeira do Pombal (BA).
Bacharel em Direito pela FMU/SP.
Especialista em Direito Público pela UNIFACS/BA.
Consultor jurídico.




O direito não é, porém, uma questão puramente normativista. (45) As normas existem para priorizar finalidades ou dispor sobre expectativas de certos comportamentos. Mas elas mesmas não auto-regulam suas inevitáveis conexões no interior do ordenamento. Além disso, não indicam o modo pelo qual serão interpretadas e aplicadas em face das situações mundanais. Eis que surgem então, para complementar o repertório sistêmico, os componentes que nomeio de postulados jurídicos e que outros preferem identificar como “normas de segundo grau”, “normas estruturantes”, “princípios”, “critérios”, deveres, “metanormas” etc.

No Brasil, HUMBERTO ÁVILA, gaúcho do mais denso estofo intelectual, denomina-os de postulados normativos aplicativos ou deveres estruturantes de aplicação de regras e princípios. (46) Essa aparente instabilidade referencial não é, contudo, relevante, embora seja mais produtivo cientificamente atribuir palavras distintas e exclusivamente apropriadas às idéias formadas distintamente, como já aconselha JAMES MADISON, em seus The federalist papers, do Séc. XVIII. (47) Mas o que efetivamente importa para a Ciência Jurídica é que a estrutura lógica usual dos postulados jurídicos segue estável e sua funcionalidade não se confunde com a das normas.

As espécies normativas são logicamente estruturadas de forma condicional (hipotética), já os postulados jurídicos têm estrutura lógica incondicional (categórica). A função básica destes consiste em prescrever critérios, diretrizes ou modelos racionais para a ordenação do repertório jurídico, enquanto aquelas destinam a tutelar bens e estados de desejos (fins), dispondo contrafactualmente em relação a determinadas situações ou estados de coisas. Para serem imperativos os postulados não necessitam evidentemente incorporar as propriedades das normas. A imperatividade não é qualidade privativa destas. (48) No entanto, para serem jurídicos, os postulados hão de ser autorizantes.

Os postulados jurídicos existem. E existem dentro da ordem jurídica como condições de possibilidade de conhecimento desta. Se estivessem fora do sistema jurídico não poderiam dispor da forma jurídica, porque estaria à margem do código jurídico. São autênticos imperativos sistêmicos autorizantes, que, por também serem categóricos, (49) impõem-se inapelavelmente aos operadores do direito nos ensejos de interpretação/aplicação das normas. Por exemplo, mediante procedimento de motivação das decisões, os postulados jurídicos autorizam os jurisdicionados a exigir das instituições encarregadas de aplicar e executar as normas senso de razoabilidade e proporcionalidade na sua atuação.

É pacífico, atualmente, que os efeitos desproporcionais com a situação de fato ou o estado de coisa, decorrentes de medidas jurisdicionais ou administrativas, autorizam o lesado a acionar o sistema jurídico no sentido de fazer cessá-los ou mitigá-los. Do mesmo modo, escorado no postulado jurídico de razoabilidade, hoje, é plenamente aceitável que o juiz, em situações comunicativas excepcionais, afaste a incidência de um princípio ou duma regra em virtude de imperativos de eqüidade ou de irresistível necessidade de concreção da justiça. Ora, neste passo, pode-se então entrever que a incidência das normas não é absoluta, uma vez que a aplicação destas pode ser abortada episodicamente com a finalidade de atender a valores superiores que orientam a sociedade política. (50)

A constatação de que os postulados jurídicos não são normas e tampouco estão situados num nível metanômico ou superior ao das normas é iniludível. Isso, definitivamente, não quer significar que eles não sejam jurídicos, como já demonstramos. Os postulados não estão nem acima nem abaixo das normas. Estão eles entre estas, operando a função de ordenação do sistema jurídico, tornado seu repertório equilibrado e harmônico. Direito é, de fato, uma estrutura. E a existência de qualquer estrutura está condicionada ao equilíbrio e harmonia dos componentes que formam o seu repertório. Estrutura sem equilíbrio desaba, sem harmonia destrói-se. Em prol dessa calibragem sistêmica (51) é que se admite vez ou outra a não-incidência de normas legais expressas, por exemplo.

Os postulados jurídicos, em virtude de um imperativo originalmente racional, autorizam o juiz a absolver o réu, em cujo favor milite a dúvida (in dubio pro reu) ou, em algumas hipóteses, a pronunciá-lo, também em caso de dúvida (in dubio pro societatis). (52) Na primeira hipótese, privilegia-se o fim almejado pelo princípio de presunção de inocência. E, no segundo, pelo princípio do juízo natural. Os postulados contribuem decisivamente para a solução de antinomias e outros conflitos entre espécies normativas (critério hierárquico, cronológico etc.) e, sob o ângulo pragmático, potencializam o uso performativo da linguagem, conferindo racionalidade, equilíbrio e harmonia ao repertório jurídico (regras da teoria do discurso ou da argumentação, razoabilidade, proporcionalidade, eficiência etc.). (53), (54)

No ambiente jurídico também não se configura novidade alguma as afirmações segundo as quais: 1) o conhecimento da norma pressupõe o do sistema e o entendimento do sistema só é possível com a compreensão das suas normas (postulado da coerência); 2) só é possível conhecer a norma com a análise simultânea do fato, e descrever os fatos com recurso aos textos normativos (postulado da integridade); (55) 3) as normas são partes de um sistema (postulado da unidade), 4) devendo-se a elas emprestar maior eficácia possível (postulado da máxima efetividade); 5) em caso de concorrência entre bens juridicamente tutelados, a preferência por um não pode implicar no sacrifício do outro (postulado da concordância prática); 6) os direitos fundamentais não podem ser excessivamente restringidos (postulado da proibição de excesso). E por aí vai. A doutrina, notadamente a pós-positivista, é prenhe de exemplos. (56)

São situações como essas, sempre mal explicadas ao longo da tradição jurídica, que agora o globalismo jurídico ou teoria global do direito – a mais nova proposta de descrição científica do direito, alinhavada no semi-árido do sertão nordestino do Brasil, tenta lançar luzes, ao tempo em que se submete à douta apreciação da comunidade jurídica, a quem também oferta com muita alegria, com fulcro no procedimentalismo jurídico, o conceito de direito positivo. Direito define-se: ordenação de normas e postulados jurídicos destinada à realização do bem-comum.

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(45) KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Coimbra: Armênio Amado, 1984, 6ª ed.

(46) Cf. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2003, 1ª ed., págs.79 e ss.

(47) MADISON, James. Os artigos federalistas. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1993, p. 268.

(48) KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. São Paulo: Martin Fontes, 2005, 4ª ed., p. 45.

(49) KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. São Paulo: Martin Fontes, 2002.

(50) Cf. ÁVILA, Humberto. Op. cit., p., 2ª ed. p. 95/98.

(51) FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Teoria da norma jurídica: ensaio de pragmática da comunicação normativa. Rio de janeiro: Forense, 2000, 4ª ed.; Relativamente ao conceito e à forma das estruturas, cf. TELLES JUNIOR, Goffredo. O direito Quântico: ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica. São Paulo: Max Limonad, 1985, 6ª ed.

(52) Nos processos de competência do Tribunal do Júri, na fase de formação da culpa, a dúvida geralmente milita em desfavor do réu.

(53) FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 2003, 4ª ed; Idem. Direito retórica e comunicação. São Paulo: Saraiva, 1997, 2ª ed; SEMAMA, Paolo. Linguagem e poder. Brasília: Editora UnB, 1981.

(54) ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria de justificação jurídica. São Paulo: Landy, 2001; ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário. São Paulo: Saraiva, 2004, 1ª ed.; HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002, 2ª ed.

(55) ÁVILA, Humberto. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ, de Atualização Jurídica, v. I, nº. 4, julho, 2001. Disponível em: . Acesso em: 14 de novembro de 2006.

(56) COELHO, Inocêncio Mártires. Repensando a interpretação constitucional. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ, de Atualização Jurídica, v. I, nº. 5, agosto, 2001. Disponível em: . Acesso em: 13 de novembro de 2006; Cf. MODESTO, Paulo. Controle jurídico do comportamento ético da Administração Pública no Brasil. RDA nº 209, pp. 77 e ss., Rio de Janeiro, Renovar, 1997.

Referência Bibliográfica deste Artigo (ABNT: NBR-6023/2000):
SANTOS, G. Gomes do. Globalismo jurídico: a nova face do direito (III). Blog do Gomes, Ribeira do Pombal, novembro, 2006. Disponível em: <http://globalismojuridico.blogspot.com>. Acesso em: xx de xxxxxxxx de xxxx (substituir x por dados da data de acesso ao site).

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